domingo, 14 de novembro de 2010

Bem perto do coração selvagem

"Perco a consciência, mas não importa, encontro a maior serenidade na alucinação. 
É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer.
Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo. Ou pelo menos o que me faz agir não é o que eu sinto mas o que eu digo. Sinto quem sou e a impressão está alojada na parte alta do cérebro, nos lábios — na língua principalmente—, na superfície dos braços e também correndo dentro, bem dentro do meu corpo, mas onde, onde mesmo, eu não sei dizer.  O gosto é cinzento, um pouco avermelhado, nos pedaços velhos um pouco azulado, e move-se como gelatina, vagarosamente.
Às vezes torna-se agudo e me fere, chocando-se comigo.
Muito bem, agora pensar em céu azul, por exemplo. 
Mas sobretudo donde vem essa certeza de estar vivendo? Não, não passo bem. 
Pois ninguém se faz essas perguntas e eu... 
Mas é que basta silenciar para só enxergar, abaixo de todas as realidades, a única irredutível, a da existência.
 E abaixo de todas as dúvidas — o estudo cromático — sei que tudo é perfeito, porque seguiu de escala a escala o caminho fatal em relação a si mesmo. 
Nada escapa à perfeição das coisas, é essa a história de tudo."

                                                                                                                                           Clarice Lispector

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